quarta-feira, novembro 15, 2006

Coisas da Feira II

Feira de Silves, óleo sobre cartão de Samora Barros (reprodução parcial), s/d


Coisas da Feira II
(deve-se começar pelo Coisas da Feira I, mais abaixo)

Conforme previsto, aí pelo princípio do fim da tarde, de ontem, dirigi-me à Feira.
Armei-me de chapéu de chuva, pois já me tinha apercebido de uns chuviscos intermitentes, que aliás já me tinham levado a recolher a roupa que tinha lavado de manhã e posto a secar no terraço, e saí para a rua no sentido do cemitério ou seja, no sentido da Feira (sentido oposto ao que me leva à Escola; a distância será sensivelmente a mesma).
Já a meio do caminho comecei a pensar que afinal não haveria tanta mudança. Regressavam famílias com sacos cheios de mantas e toalhas, e moços pequenos a apitar assobios de loiça e gaitas ou deliciando-se com os brinquedos novos. Nas proximidades da feira já cheirava a castanha assada e a polvo assado, já se ouvia a gritaria dos vendedores de mantas, toalhas e lençóis, que ofereciam um faqueiro de borla, “para acabar a remessa”.
Nas primeiras tendas, para além dos assobios de loiça e gaitas de beiços, havia estatuetas do Padre Cruz, da Nª Sra. de Fátima e outras, de frades daqueles que se puxa um cordel e mostram o Bilhete de Identidade como sendo naturais das Caldas da Rainha. Espelhos redondos com o emblema do clube preferido no verso, canivetes de faca e garfo, telemóveis de imitação, mais estatuetas pisa-papéis com formas de leões, águias e dragões, (nenhumas com os símbolos dos partidos, isso foi só na segunda metade dos anos setenta...).
Mais fumo de polvo assado e de castanhas e agora os figos secos ou torrados, os figos cheios, as estrelas, as amêndoas, as nozes, as castanhas e as bolotas (eu sei que são boletras mas a maior parte de quem me lê não as conhecem como tal). Quanto aos colares ou rosários de bole... de bolotas, nem um. (queria levar um para a filha do Zé Leiteiro, a irmã do Zé e do Eduardo Leiteiros, a Maria da Graça, que mora lá para os meus lados, no Miratejo).
Já começava a escurecer, mas o cheiro dos gasómetros de carbureto não me chegava ao nariz (chegava-me só à cabeça), nem os peros cheiravam aos de Monchique..., nem podiam cheirar...; ao aproximar-me vi que tinham escrito “Peros Bravo Mofo”... Cheirei mas também não cheiravam a mofo... Depois me lembrei que havia um tipo de peros chamados os “Bravo”, de Esmolfe, tal como os que deveriam lá estar, seriam de Monchique... Mas isto também é Feira.

A seguir às cebolas, alhos, orégãos, batatas e etecêteras, vêm os chouriços, queijos e presuntos e, coisa nunca vista, bacalhau..., como se bacalhau fosse coisa de vender nas feiras, a não ser assado, nas barracas de comes e bebes. Destas não havia; mas na sequência dos chouriços, queijos e bacalhau, havia um “balcão” que servia “Tapas”, vinho e cerveja, do Zé Índio, de Vila Real de Stº António (isto, informação obtida por via do meu irmão). Mais à frente as “Roulotes Snack-Bar” com Hamburgers e Cachorros cheios de maionese e ketchup e imperial em copos de plástico.
Tal como dantes, as barracas de Seringonhos e Malaquecos (isso a que chamam farturas), homens, mulheres e crianças com açúcar no bigode, ou no sítio dele.
Gente do campo, mesmo do campo, vi um homem, baixo, atarracado, a dançar (ou bailar) ao som de uma cassete do “Marante”. O que há agora e que vêem aos magotes, como dantes vinham as famílias do campo, são as famílias de Búlgaros, Romenos ou Moldavos, com ar aciganado (isto sem nenhuma desconsideração, desrespeito ou desprimor) em que as moças já usam (ou ainda usam, pois a moda parece que já está a passar) calças daquelas que posicionam a cintura a meia altura das “nalgas”.
Depois os divertimentos, uma amostra de cada modelo: uma pista de aviões, um carrosselzito de crianças, um comboiozinho de motas de três rodas (ai os meus netinhos...), um comboio fantasma, uma pista de carrinhos de choque, sem aquelas molhadas de gente à volta a ver e com muitos carros parados; nenhum carrossel de tipo tradicional... e por fim, guardei-o para o fim, embora esteja antes da pista dos carrinhos de choque, o “Carrossel 8”!

Não é o mesmo, é mais pequeno, mas é um “Carrossel 8”!

Para quem não sabe, é como um oito visto de cima; só que no sítio onde a linha do oito se cruza, o carril do carrossel não se cruza; um pouco antes eleva-se, passa por cima da outra e mais à frente desce; estes desníveis começam a formar-se perto das extremidades do oito. Ao longo do carril, sobre “jangadas” rodadas, encaixadas umas nas outras, circulam girafas, leões, cavalos, bancos de jardim, tudo como nos carrosséis tradicionais.
Telefonei ao meu irmão, o Toy; inquiri se estaria ou se viria à feira; se fosse caso disso esperaria por ele para darmos uma volta no “Carrossel 8”. Não estava, nem estava em vias de vir, pelo menos por aquele momento. Enchi o peito de ar, esperei que a corrida terminasse e, com um nó na garganta comprei um bilhete, entreguei-o ao cobrador que estava à entrada do carrossel e sentei-me num ”banco de jardim”. Durante a viajem não fechei os olhos mas também não vi nada; só pensei, só recordei...
Acabou a viajem, saí; ainda com as pernas trémulas dirigi-me ao “Snack-Bar Elvis” pedi uma imperial; com a vantagem do copo ser de plástico, continuei o percurso, agora de volta, pelo lado direito de quem regressa ao ponto de partida.
Estende-se por aí um longo e alto barracão com várias alas onde se vende toda a roupagem e sapataria, para além de alguns brinquedos e bugigangas. Por aqui é que circulava mais gente e até se sentia o ar um tanto ou quanto abafado. Fui espreitando a ver se encontrava algum brinquedo para os meus netinhos (hei-de lá voltar mais tarde...)

Demorei-me um pouco junto a uma banca onde uma ciganota, debruçada sobre elas, as remexia e anunciava o preço, das “Tixartis”. Quando dei por mim, estava o cigano a “marcar-me”, desconfiado de que eu estivesse a olhar para os seios que eventualmente se avistassem no interior do decote descaído daquela cigana vistosa... Remexi numa ou noutra camisola, como a procurar uma cor mais a meu gosto e fui-me afastando... Um pouco mais adiante, comprei uma faca, de bom corte, para a minha cozinha.
Há muitos anos atrás, também pela Feira de Silves, lá na Cerca da Feira, um moço cigano, que até poderia ser pai ou tio destes, veio-me pedir “meças”, quando eu estava a puxar conversa com a irmã... Nessa altura estava por perto o Zé Luis, filho de feirantes e que anos atrás tinha andado comigo na Escola Primária, em Alcantarilha e depois também em Silves, e então a conversa ficou por ali...

Digam o que disserem, a feira já não é o que era... é apenas uma amostra da feira que era...
Adolescentes, que era o que eu era quando a feira era, e de que a feira se enchia, contavam-se, ontem, pelos dedos.

Mas esta é apenas uma visão da feira, há outros olhares sobre a feira ou melhor, sob a feira, do lado do olhar de quem a faz e não de quem a consome...


Zé Baeta
2/11/2006

4 comentários:

Anónimo disse...

Afinal, parece haver muita razão nos versos do Poeta quando diz que "Onde Sancho vê moinhos, D. Quixote vê gigantes". Eu, que gostei tanto da outra versão, a que se referia à feira de antigamente, não consegui ver esta feira, estas pessoas carregadas de compras, estas crianças com brinquedos, nada... Até duvidei de que o autor se referisse à feira deste ano, pensei que estava a brincar!... Duvidei também de mim: será que sou uma pessoa mal intencionada? Que fui para lá com juízos pré-cocebidos? Mas tenho familiares que ainda mantêm o hábito de "vir à feira", que aproveitaram também o fim de semana prolongado, com uma "ponte" que fizeram, fui com eles, e saímos todos com uma sensação de desgosto e frustração. Os olhos são outros? Os dias seguintes terão sido melhores? O autor estava de tal forma saudoso que viu outra feira? Bem, não sei... "Viu moinhos, são moinhos! Viu gigantes, são gigantes!"

Anónimo disse...

Esqueci-me de elogiar o autor que, lavando, estendendo e recolhendo a roupa, para não se molhar, não só o faz, como o diz publicamente! A maioria não faz, e aqueles que fazem não gostam de o confessar, como se isso os tornasse menos homens! Eu sei que ele está, neste momento, em condições especiais, mas mesmo assim é de louvar!

Manuel Ramos disse...

Sem tomar as dores alheias, por não ser o autor, acho que fez apressada interpretação e, do que diz, tem razão quando se inspira em Cervantes. Então não leu quando o autor, em jeito de conclusão, termina dizendo:
«Digam o que disserem, a feira já não é o que era... é apenas uma amostra da feira que era...
Adolescentes, que era o que eu era quando a feira era, e de que a feira se enchia, contavam-se, ontem, pelos dedos.»
Talvez uma segunda leitura, com menos juízos pré-concebidos...

Anónimo disse...

Li a conclusão, pois, mas da minha leitura total pareceu-me poder interpretar como, apesar do entusiasmo inicial, em que o autor conseguiu sentir e ver coisas que eu não vi nem senti, houve decepção e saudade pela feira como era dantes!
E não me inspirei em Cervantes, que ainda está por ler (tirando a versão, "em quadradinhos", da Escola, que nunca esqueci); esse mérito pertence, se a memória me não falha, a António Gedeão, poeta que muito admiro: ele é que se inspirou nas figuras daquele.